sábado, 12 de julho de 2014

Pezinhos de vento






- Então, doutor, eu tenho certeza de que ela veio com rodinhas nos pés. Não tem como procurá-las de novo?
- Não, mãe. Fique sossegada que eles não vêm com esse item de fábrica... São apenas crianças.
E o doutor estava certo. Não eram rodas. Eram asinhas que levavam a menina para tudo quanto é canto, aonde mãe alguma alcança. As asinhas supersônicas abriam a porta da cozinha, feito ventania, e depois, a gaveta, expondo todas as alegorias para uma brincadeira. O avental da cozinheira virava vestido de gala, os panos de prato ficavam mais agradecidos deitados no piso frio de cerâmica, e assim por diante.
Supostamente o quintal sempre seria menor do que ela, pois em passos miúdos percorria espaços graúdos. Pisava nas saúvas que fugiam aos prantos: Queremos nossa mãe! Sem contar os degraus da escada, que ela nem mesmo contava, antes de escalá-los, um a um. E quando a mãe desaparecia lá para cima, a menina exclamava todas as onomatopéias que cabiam na ponta da língua. Que candura era aquele pedacinho de gente debruçado no sopé da escada, solfejando “mã”. Coitada da menina, e da mãe, comovida. Chora não, minha filha! A mamãe já desce. Antes que a pequena inventasse de ajudar a lavar os azulejos do banheiro. Quem duvidaria?
               A mãe maneava a cabeça: “A quem puxou essa menina?” Num belo dia escutou: “A você, querida”. Vai ver era verdade. Se não era xerocópia nos traços, poderia ter lhe herdado as asas.
             Enquanto isso a menina corria, para variar, levando consigo algum artigo garimpado na casa ou, não raro, nos domínios do jardim. Volta aqui, menina, que o texto logo acaba. Pensando bem, melhor avisar aos passageiros que essa viagem não tem parada.

               
                 


quinta-feira, 10 de julho de 2014

As rosas bivitelinas do jardim



                Essa foi a primeira vez em que vi surgir, no mesmo ramo, uma rosa amarela e uma rosa vermelha. Porque não as duas vermelhas ou as duas amarelas, nem a natureza explicaria sem alguns tropeços nos entraves genéticos. O fato é que não encontro a mais bela entre elas, muito menos qual seja mais flor comparada à outra. Uma vez que sejam tão diferentes, tornam-se mais interessantes. Olhando-as, penso: ainda bem que não nasceram iguais.
Também não nascemos iguais, embora sejamos do mesmo ramo chamado humanidade. É impossível eleger características, aptidões e manias, definindo-as como padrão entre a espécie gente. Daí que sofremos quando tentamos nos transformar na flor vermelha, ou na flor amarela, pois se faça saber de uma vez por todas, que o semelhante nunca será igual.
E o fim que damos às nossas peculiaridades pode se agravar em crime contra nós mesmos. É como se, ao caminhar por um jardim, a certa altura nos incomodássemos com as proporções de uma planta que data do prólogo, e resolvêssemos arrancá-la pela raiz, ao invés de podar os excessos que prejudicam a passagem. E depois que a planta é removida, resta um buraco repleto do nosso vazio. Amputamos uma parte de nós e perdemos a digital, justamente o que depõe pela nossa individualidade, enquanto poderíamos simplesmente aparar arestas e corrigir falhas. 
Aceitar-se, para essa flor aqui, alinha-se ao exercício diário de lidar com cada uma das limitações pessoais e, ciente da fragilidade de uma auto-ajuda, usufruir da misericórdia e graça de uma ajuda do Alto. Afinal há quem saiba, sem entraves genéticos, os porquês que envolvem a rosa vermelha e a rosa amarela naquele mesmo ramo. Por certo Ele não se encontra tão longe que não possa ser encontrado por um coração sedento por descobrir-se Nele.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Afinal, amar...


“Amar o inatingível, o intocável
Não será amar, tanto quanto
O deixar-se doar, atingir e tocar;
Amar, por um segundo apenas,
Pode até valer à pena,
Mas transformar esse segundo
Em ato contínuo
Valerá pela vida inteira.
Amar é, tão simplesmente,
Encontrar-se a certo ponto de
 Confundir-se com o outro.
Que meu coração aprenda a amar assim.”


segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sapos




Era uma tarde de trabalho pesado no jardim, quando nosso vizinho de cerca resolveu nos presentear com uma cuba de vidro pontuada por dezenas de girinos, alguns tão minúsculos que mal se diferenciavam dos resíduos amorfos da água. Digamos que a generosidade do velho David tenha sido um tanto quanto inesperada e nós um tanto quanto matutos, pois ficamos plantados ao lado da cerca feitos duas estacas, olhando abestalhados para a cuba.
Enquanto nada se passava do lado de cá, nosso vizinho já voltava do lado de lá, trazendo nas mãos uma planta original do lago onde os bebês flagelados foram desovados, alegando que assim se sentiriam em casa. Foi dura a responsabilidade incutida à pobre planta, já que o jardim do nosso vizinho não é qualquer meia dúzia de gérberas. Aquele é um recanto digno de Hespérides, com cores vibrantes e formas obtusas que minha mente não se esquecerá tão fácil.
Agora é que são elas... O que fazer com esses projetos de sapos? Por hora não havia muito para se fazer além de assisti-los agitar nervosamente a cauda na água. Mas, e depois? Adotá-los seria uma opção pertinente?
Imaginei nossa família saindo nas fotos com um sapo de estimação. Vi o sapo crescendo, perdendo a cauda, desenvolvendo as patas traseiras e dianteiras, ganhando proporções de bicho, saindo da água, entrando em casa.
O menino gritando do quintal: “Olha, mamãe, o sapo já tem perninhas!”
E, tempos depois, de dentro da casa: “Ele gostou do nosso sofá!”
O lado bom é que sapos tendem a ser mais econômicos do que cachorros e gatos. Não demandam banhos, passeios, tosa, e tudo o mais. Seriam os bichos ideais considerando o quadro de rinite alérgica da família Penteado Mendes.
Voltando à realidade, bem que tentamos, mas não conseguimos transpor o estranhamento inicial aos girinos. Despejamos o conteúdo da cuba na terra fresca e acompanhamos a água ser sorvida pelo solo juntamente com as vidas que eclodiram dela. Que o bom e velho David não escute essa minha confissão. E antes que nos julguem e condenem em primeira instância, devo acrescentar: Se já engolimos tantos sapos no decorrer da vida, para quê criar outros tantos no próprio quintal? A não ser que os sapos de casa sejam mais domesticáveis, nada me convencerá do contrário.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A agonia de uma rosa

       

          A flor residia no jardim dos fundos de um sobrado. As pétalas repolhudas não decidiam entre o amarelo e o alaranjado, assumindo, por fim, uma versão pálida do entardecer. Suas irmãs de seiva eram igualmente belas e, a exemplo do ocaso, não se tornavam enfadonhas quando admiradas. Rosas costumam desabrochar anônimas, mas com o decorrer do tempo se tornam públicas de tão espetaculares. E, pelo fato de ser Primavera, os beija-flores faziam visitas rápidas às roseiras, temendo defraudar a beleza casta das flores.
Mas houve uma tarde propensa a chover em que os caramujos do jardim, dissuadidos pela umidade, resolveram burlar as regras da boa convivência, arrastando-se sorrateiramente ao canteiro sagrado das rosas. Sagrado, principalmente para quem tinha por hábito apreciar o diálogo dicotômico das cores durante uma sentada rápida para o café. E a rosa pôr-do-sol – como convencionei chamá-la- foi invadida, sem qualquer aviso prévio, pelo visco de um molusco oportunista.
Não houve tempo para choro, nem vela. À flor restou consentir, subserviente, ao tremendo infortúnio; uma desolação só. Para todos os efeitos, o pedúnculo da flor quedava solidário, na verdade, forçado pela concha volumosa do recente inquilino. E que culpa tem a rosa por ser séssil, inerte, e tão ligada ao ramo? Em horas como essa, fazem falta as patas compridas de uma saracura ou mesmo as articulações dos insetos saltitantes. Pois essa é uma das compensações da natureza: na ausência de beleza, funcionalidade.
Uma das pétalas, talvez a mais frágil, não resistiu, desprendendo-se do grupo para seguir carona com o vento. Pudera o resto fazer o mesmo, despedir-se em pequenas frações e se safar todo dali. Só que não. Nossa rosa era apenas paisagem, enquanto o molusco apontava antenas pontiagudas, feito palito de dente beliscando aperitivo fácil na cumbuca de porcelana. Pena que falte às flores uma boca que esbraveje por seus direitos, algo do tipo: Tire, AGORA, suas ventosas asquerosas de cima de mim! Conjecturas pessoais que tampouco adiantariam, pois caramujos não escutam ou ao menos fingem não escutar. Pressentem a força da gravidade, mas não a gravidade do problema, se é que entendem aonde quero chegar.
Antes as rosas tivessem dedos que deferissem petelecos e não acúleos que ferissem nossos dedos. Felizes as plantas que se fecham ao mínimo toque, como aquelas que minha curiosidade importunava na infância. As flores, contudo, não se preocupam com isso ou aquilo. No dia seguinte, para se ter uma ideia, não havia mais caramujo calcando ventosas sobre as pétalas carpetadas. Havia tão somente uma flor em meio às outras flores, ainda mais vibrante, talvez por razão das faíscas de luz que escapavam do alvorecer. E a agonia da rosa passou. Foi-se embora, junto com o pôr-do-sol.
Sim, senhora, dona Rosa... Nem toda batalha é ganha no grito.