A flor
residia no jardim dos fundos de um sobrado. As pétalas repolhudas não decidiam
entre o amarelo e o alaranjado, assumindo, por fim, uma versão pálida do
entardecer. Suas irmãs de seiva eram igualmente belas e, a exemplo do ocaso, não
se tornavam enfadonhas quando admiradas. Rosas costumam desabrochar anônimas,
mas com o decorrer do tempo se tornam públicas de tão espetaculares. E, pelo
fato de ser Primavera, os beija-flores faziam visitas rápidas às roseiras,
temendo defraudar a beleza casta das flores.
Mas houve uma tarde propensa a chover em que os caramujos do jardim,
dissuadidos pela umidade, resolveram burlar as regras da boa convivência,
arrastando-se sorrateiramente ao canteiro sagrado das rosas. Sagrado, principalmente
para quem tinha por hábito apreciar o diálogo dicotômico das cores durante uma
sentada rápida para o café. E a rosa pôr-do-sol – como convencionei chamá-la- foi
invadida, sem qualquer aviso prévio, pelo visco de um molusco oportunista.
Não houve tempo para choro, nem vela. À flor restou consentir,
subserviente, ao tremendo infortúnio; uma desolação só. Para todos os efeitos,
o pedúnculo da flor quedava solidário, na verdade, forçado pela concha volumosa
do recente inquilino. E que culpa tem a rosa por ser séssil, inerte, e tão
ligada ao ramo? Em horas como essa, fazem falta as patas compridas de uma
saracura ou mesmo as articulações dos insetos saltitantes. Pois essa é uma das
compensações da natureza: na ausência de beleza, funcionalidade.
Uma das pétalas, talvez a mais frágil, não resistiu, desprendendo-se do
grupo para seguir carona com o vento. Pudera o resto fazer o mesmo, despedir-se
em pequenas frações e se safar todo dali. Só que não. Nossa rosa era apenas
paisagem, enquanto o molusco apontava antenas pontiagudas, feito palito de
dente beliscando aperitivo fácil na cumbuca de porcelana. Pena que falte às
flores uma boca que esbraveje por seus direitos, algo do tipo: Tire, AGORA, suas
ventosas asquerosas de cima de mim! Conjecturas pessoais que tampouco adiantariam, pois
caramujos não escutam ou ao menos fingem não escutar. Pressentem a força da
gravidade, mas não a gravidade do problema, se é que entendem aonde quero
chegar.
Antes as rosas tivessem dedos que deferissem petelecos e não acúleos que
ferissem nossos dedos. Felizes as plantas que se fecham ao mínimo toque, como
aquelas que minha curiosidade importunava na infância. As flores, contudo, não se
preocupam com isso ou aquilo. No dia seguinte, para se ter uma ideia, não havia
mais caramujo calcando ventosas sobre as pétalas carpetadas. Havia tão somente
uma flor em meio às outras flores, ainda mais vibrante, talvez por razão das
faíscas de luz que escapavam do alvorecer. E a agonia da rosa passou. Foi-se
embora, junto com o pôr-do-sol.
Sim, senhora, dona Rosa... Nem toda batalha é ganha no grito.
Um belo relato a partir de observações sutis do que está à volta. Parabéns.
ResponderExcluirObrigada, Rodrigo! Vai ser difícil sair desse jardim, talvez mais do que da casa. De qualquer forma, uma xícara de café apreciando o que ele tem para nos oferecer, durante a primavera-verão, é proposta irrecusável! Foi a partir de um momento como esse que nasceu esse texto. Abraço.
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