Já, os filhos,
esses não compartilham da dominância de todos os nossos genes, e ainda bem por
isso, de forma que meu mais velho nasceu predisposto a se tornar um artista.
Anos atrás não saberia dizer ao certo se o menino é dado a ser artista ou
arteiro, contudo, desde o advento de uma menina em nossas vidas, ficou
clarividente que o menino é artista enquanto a menina só poderia ser arteira.
Voltando ao
passeio, bem provável que essa curta viagem à Londres tenha ocorrido em um
sábado. Certeza absoluta, porém, de que não foi em dia de sol. Sinto, inclusive,
gotas finas de garoa apagando os traços que me falham na memória, o que não vem
ao caso na compreensão da arte ou da história.
Dentro do museu
me chamou à atenção o pé direito absurdamente alto e a grande quantidade de
corredores sugerindo um labirinto projetado por Dédalo, motivo pelo qual já me
encontrava mentalmente perdida em um deles. Seguimos, eu e o menino, por um
amplo corredor do piso superior que desembocava em uma sala cujas paredes foram
tingidas em ocre tão orgulhoso quanto vibrante, quebrando a monotonia dos olhos
da gente. Logo à entrada havia uma espécie de bancada, protegida por vidro, onde eram expostas as obras do artista cujo nome não
me lembro de pronto.
Mas me lembro de
ter explorado o acervo em insuperáveis dois minutos, contrapondo ao menino que
se demorou em cada um dos contornos denunciados pelo grafite. Haja vista o disparate, enrubesci de vergonha, presumindo-me muito objetiva em resposta à
subjetividade que as obras exigiam de mim. Diminuí a marcha, saquei meu celular
do bolso da calça jeans e fotografei algumas das gravuras, movida agora por novo
interesse. Dali a pouco retornou o menino, vindo da outra extremidade da bancada,
como faria o carretel escorregadio de uma máquina datilográfica chegando à
eminência de uma das margens do papel. Perguntei: “E então, está gostando das
gravuras?”
Ele franziu a
testa, retorceu os lábios justapostos e antes que eu conseguisse extrair alguma
mensagem subliminar dessa feição impressionista, respondeu-me com outra
pergunta “Ele era criança, né?”
“Como assim?”
repliquei, tentando disfarçar que achava graça do comentário.
“Ele (o artista)... Quando fez esses
desenhos... Era da minha idade. Não era?”
Tenho cá pra mim
que caso os outros adultos estivessem ouvindo nossa conversa,
responderiam, em uníssono, com um grave e revoltado não. Alguns, quem sabe, menos
ofendidos, teriam se rendido ao riso. No entanto todos estariam de acordo que o
artista já era crescido quando criou as formas borradas pelos rastros de
grafite. Que me perdoem os acadêmicos, mas foi divertidíssimo rever aquelas gravuras
à luz da interpretação espontânea e sincera de uma criança.
Quem dera todos
os museus dispusessem de guias infantis durante incursões culturais como essa,
pois tornariam os matizes ainda mais brilhantes, as esculturas ainda mais
sinuosas e os corredores ainda mais convidativos. Seriam autênticos mecenas da
arte moderna.
Não fosse a fecundação,
mote que inspirou a gravura da foto, um tema demasiadamente adulto, concordaria
com o menino sem desmerecer o talento do autor e o valor artístico da obra,
porquanto, fecunda mesmo, é a curiosidade dos aspirantes à artista que um dia
já fomos.