Em junho de
2014, visitamos uma das casas onde viveu Jane Austen, a proeminente escritora
britânica falecida nos primórdios do século XIX. A propriedade está localizada em uma pequena
vila nos arredores de Winchester, cidade que já foi capital política da
Inglaterra e que hoje abriga nada mais, nada menos, do que a lendária Távola
Redonda, centenas de anos depois que se foram os cavaleiros.
Voltando à casa
dos Austen, trata-se de uma propriedade muito bem conservada, assim como todos
os edifícios históricos que visitamos na Inglaterra. A residência, que data da
transição do século XVIII para XIX, possui três ou quatro quartos, salas de
estar e jantar, cozinha, além de um imenso e esplendoroso jardim. Não, eu não
me esqueci dos banheiros. Banheiros dentro de casa eram portáteis, ficavam embaixo
das camas, à disposição dos moradores e se chamavam penicos ou bispotes, como o
leitor preferir.
O mobiliário da
época é fantástico, e também não resisti à tentação de me caracterizar com a
indumentária típica de uma senhorita Austen. Mas nada me chamou tanto a atenção
quanto o lindo jardim que circunda os fundos e laterais da casa. Decerto que o
gramado em perfeito verde tem sido mantido por funcionários atuais, o que não nos
garante ter sido tão reluzente em tempos habitáveis da casa, mas não vejo mal
algum em imaginar que sim.
Se existe algo
que aprendi, vivendo na Inglaterra, foi a apreciar jardins. Não sei quanto aos
demais britânicos, mas os ingleses são primorosos jardineiros. Alugamos uma casa
durante nossa estadia em Southampton, cujo contrato de locação colocava igual
peso na conservação interna e externa da casa, de modo que a manutenção da
flora do jardim era tão fundamental quanto devolver a casa com o piso em bom
estado e a pintura das paredes limpa.
Explica-se,
dessa feita, o belo jardim na propriedade que pertenceu à família Austen, naquele
exato dia ocupado por um grupo de aproximadamente vinte adolescentes orientais.
Na ausência de bancos, as estudantes se sentaram no gramado para uma aula ao
vivo e a cores sobre a literatura de Jane Austen. Se me permitem especular qual
obra era estudada, arrisco “Pride and Prejudice” (Orgulho e Preconceito), carro
chefe da romancista inglesa, que também é uma das minhas autoras preferidas.
Seguido ao
inexplicável sentimento de posse que me acometeu por aquele jardim, ao ponto de
me incomodar com um grupo de garotas desconhecidas pisando na minha grama, entreguei-me
a um momento de puro devaneio. Entre um episódio e outro de realidade, fechei os
olhos e visualizei Jane Austen no auge de seus trinta e tantos anos, quem sabe sentada
em uma banqueta de madeira crua, confabulando com as plantas ideias para novos
escritos. Acredito que suas tardes tenham sido recheadas por momentos de contemplação
àquela natureza de encher os olhos, pois consta nos registros que não se casou
e, por conseguinte, não teve filhos. Sobrava-lhe tempo, talvez. Não a toa que
tenha concentrado os motes de suas obras nas tramas e artimanhas do romance e nas
mazelas sociais. E haja chá das cinco, que, a propósito, corresponde a uma
refeição completa que os ingleses chamam apenas de “tea” e nós, de jantar.
Pensando bem,
talvez Jane Austen tenha sido vítima do excesso de tranquilidade comum aos bucólicos
vilarejos que pipocam na Inglaterra, inclusive na Era da Pós Modernidade. Deduz-se
o fato a partir de cartas que a romancista remeteu aos parentes mais próximos
quando ainda residia na cidade de Bath, localizada no Condado de Somerset.
Nelas, lê-se uma Jane queixosa de enfado e monotonia. Quem sabe, em Winchester,
não tenha sido diferente.
Mas também
contemplei uma Jane absorta nos afazeres diários que uma casa rústica daquele
porte demandava, sem geladeira, fogão elétrico e outras comodidades modernas
obrigatórias, salvo na residência de uma família Amish no interior dos Estados
Unidos. Imaginei-a em volta do fogão à lenha, aceso, dispondo pequenos scones
(um tipo de pão caseiro de origem escocesa, muito popular em todo Reino Unido) para
assar em grandes tachos enfarinhados com o trigo cultivado no Condado de
Hampshire. Apesar dos períodos de vacas magras, a família de Jane Austen teve
lá suas posses, modestas alguém diria, principalmente se a referência for as
joias da coroa.
E estamos novamente no jardim da casa, observando o grupo de estudantes orientais. Cada uma
delas apoiando seu iPod ou notebook como possível, sobre os braços ou pernas
cruzadas. E a aula transcorre circunspecta, a julgar pela gravidade das
fisionomias. Ruído ali só se for uma bumblebee desavisada. As bumblebees
frequentam os jardins britânicos fazendo a vez das nossas abelhas franzinas.
Grosso modo, eu diria que são abelhas de pelúcia avantajadas, daquelas que com
certeza nunca vi igual abaixo da Linha do Equador.
Nossas jovens
continuam concentradas nos postulados literários, a despeito das bumblebees.
Tenho certeza de que Jane Austen notaria um inseto que desafiasse o silêncio do
jardim. E ainda digo mais: Quero acreditar que escrevia seus romances
despretensiosamente, como o faz uma criança ao brincar com seu brinquedo
favorito. As críticas de cunho social somos nós que enxergamos do lado de fora.
Escritores, muitas vezes, preferem enxergar abelhas e o caminho que elas fazem.
Acho que eu a compreendo, Jane. Hoje, por exemplo, é só o que quero ver.
Quase dois
séculos depois refiz seu caminho, que culminou no vilarejo de
Chawton, esse mesmo onde está a casa. Jane Austen não saiu da região de
Winchester; seus restos mortais estão enterrados sob o mármore da principal
catedral da velha cidade, primeiro endereço da escritora que visitamos na
Inglaterra. Lá, repousa simples e serena, a senhorita Austen.