Dente nascendo
não é fácil para ninguém. Não é fácil para os pais, para os irmãos e, claro,
para o bebê. Pede-se, rogando, para que ninguém em casa faça barulho, pois, uma
pena de passarinho tocando o asfalto frente ao edifício, já
seria suficientemente audível para interromper o sono fugaz da vítima do dente
de leite.
Quando a mãe
reforça o pedido de misericórdia: “não faz barulho, por favor...”, a menina sussurra
ao invés de falar. Há muita graça no movimento que ela faz com os lábios,
formando uma dobra de origami, do qual surge uma única palavra: “Filme”... Seria
desnecessário dizer mais; a mensagem vem completa, como em código morse.
Ela acompanha a
mãe até o quarto a fim de pegar o DVD. Antes, contudo, tem-se de abrir a
porta... Ah... A porta... Esqueceu-se de colocar óleo nas dobradiças. Por isso
que range, a chata. E o ruído é ainda mais ácido quando a casa aspira silêncio.
Faça-se saber
que primeiro dente é tão melindroso quanto é aguardado. Faz uma entrada
triunfal e nem ficará na boca da criança por muito tempo... Um dia vai cair e,
quando esse momento chegar, far-se-á um “auê” em torno do acontecimento. Será
barulho à beça. Não vai ter mãe com cara de misericórdia controlando a
intensidade com que os pés dos filhos mais velhos estalam no chão de madeira.
A menina, ela
mesma, vem trazer a notícia de que o bebê acordou. A soneca passou tão rápido
que a mãe nem sentiu. Pois a vida passa tão rápido ou mais, reza o discurso que
a gente dita e acredita. Bem por isso que a mãe coleciona dentes de leite que
nunca foram dela, dentro de memórias adormecidas. Mais dia, menos dia, uma
porta se abrirá e as dobradiças rangerão surdamente, despertando as lembranças
mais fugazes. Ah, sim, e as noites prometem: serão mais longas.