quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Um vaso sem flores e uma boneca

Era para ser um vaso com flores, mas amanheceu um vaso dourado com delicadas fitas de cetim entrelaçando uma circunferência vazia. A menina percebeu o desfalque e foi só interjeições:
-Oh, não! As flores sumiram!
Como assim, sumiram? Não, elas morreram. Fui eu quem as tirou daí. Joguei-as fora...
A menina se apoderou de súbito do vaso que era levinho, além de delicado. Olhou para o interior vazio e fez um bico de desapontamento. Ou seria de descrença? O que fosse!
- Como as flores morrem?
Elas estragam, caem as pétalas, ficam murchas, perdem as folhas. Não é muito diferente da gente, não. Embora esse detalhe eu tenha ocultado dela naquele momento.
-Por que elas morrem, mamãe?
Morrem porque lhes falta água. Às vezes luz... Ou porque elas têm de morrer mesmo, quando dá o tempo delas.
A menina correu para a área de serviço; foi conferir o cesto de lixo. Ali estavam as finadas: pétalas escurecidas nas bordas remetendo ao sombreamento delineado por um hábil artista. Jaziam, porém, tristonhas, apagadas. O cetim enrugou em toda a extensão da planta. Não havia o que fazer por elas. Acabou-se.
Cedo ou tarde se chega a determinado ponto da compreensão em que a morte deixa de ser questionada para ser aceita. Se bem que, aceitar totalmente, talvez nunca o seja por essa eternidade que vive dentro da gente.  Nascer é bem mais fácil para a nossa infinidade, mas é a morte que dá o tom à nossa finitude. Deu para entender? Não se trata apenas de aspectos fisiológicos.
Coube à menina encerrar a conversa. Distraiu-se, o que não é surpresa para seus três anos de vivacidade.
O dia escorregou mal-e-mal ligeiro. A noite chegou espontânea e a hora de dormir caiu como uma luva para os bocejos das crianças. O rito para o sono começa. Escovar os dentes, fazer a última gota de xixi, conferir a cama. Ei, cadê a boneca? Aquela boneca de veludo que completa o aconchego das cobertas e o carinho dos dedos que roçam a bochecha rosada da menina. A naninha de saião rodado. Sumiu, dispara um desavisado.
-Sumiu não – avisa a menina- Ela morreu!
Como assim, morreu? Bonecas não morrem.
- Morrem sim!
Justifiquei que bonecas não morrem, pois nunca foram vivas.
- Não morrem? Então só a flor morre?
Já sentiu um aperto no peito? Como se várias fitas delicadas de cetim amarrassem a circunferência carnosa do seu coração? Foi essa a sensação em resposta àquela pergunta: “Só flor morre?”
Pudera lhe dizer que sim, mas a resposta obviamente teve de ser um não. Todos os seres vivos morrem, desde a flor até os animais. A gente mata bactérias, por exemplo. Quem se lembra que também são vivas? Só na hora da dor de garganta, diga-se de passagem.
A menina estava em pé como se guardasse a porta do armário. Nesse instante se afastou e abriu a porta da bagunça. Foi de onde tirou a boneca. Eis o milagre: a naninha reviveu.
E assim se encaixa a primeira peça no quebra cabeça que a gente leva a vida toda montando, mas que, contudo, sempre nos faltará a derradeira peça.